21.10.09

O Cliente


Uso roupas vitorianas em dia de função. É assim que me sinto. Saias, anáguas, corpetes, finas coleiras negras, um coque meio despenteado. Comprei o quarto há algum tempo, decorei-o com móveis antigos, cama, guarda-roupas e penteadeiras negros e maciços e cetins vermelhos ou rosa-velho, rendas, transparências. Com certeza parou o olhar em mim por conta disto. Grisalho, cabelos crescidos e desgrenhados, mal vestido, bigodes torcidos à Salvador Dali, dedos longos, unhas longas e olhos brilhantes e amarelos mal fixados em pálpebras caídas e úmidas. Pegou-me pelo braço.
Madame indicou o quarto com a cigarreira. Ele cheirava à produto químico, não soube identificar naquele dia. A noite estava clara e antes de acender a lâmpada deu uma boa olhada no cômodo. Apertou meu braço e disse com voz de fumante antigo: - Não dê um pio. - Tirou um lenço vermelho da maleta que trazia. Desamarrou minha blusa e deixou-me só de saia e botas. Molhou o polegar e o indicador com saliva e cacheou um pega-rapaz sobre cada orelha minha. Lambeu de novo o polegar e engomou minhas sobrancelhas. Olhou-me por longos minutos. Fiquei paralisada. Não porque não tinha motivos para gritar, mas de pavor. Tinha certeza que ele me enforcaria. A morte entrou com ele naquele quarto, tenho certeza. Com meu pó-de-arroz tirou o brilho de meu colo. Deitou-me no divã. Tirou o paletó, tirou o lenço do pescoço e enrolou-o na palma da mão.
Sem me arranhar com as unhas começou a contornar meu rosto com o dedo. Seu cabelo tinha um cheiro suado. Tocou minhas pálpebras e sussurrou: - Que tristeza te enuviou? Respondi: - Como? Com desprezo mandou-me calar. Depois disse: - Sim, sim... Foi de vergonha e sofrimento teu caminho até aqui. - Ignorando minha surpresa continuou a dedilhar-me. Nos meus lábios voltou a perguntar: - Que fruta madura te deu esta cor? Ofegante: - Sim, sim... claro, pêssegos verdes, este rubor é da dureza de sua polpa, não de teu suco. - Tocou todo o meu corpo e seguia perguntando, para ele ou para a de mim que o habitava, sobre como havia me tornado o que sou, ou o que devia ser para ele.
Pensei naquele dia que era a primeira vez que vendia meus pensamentos. Se eu vendia meu corpo para não ter que vendê-los, com que direito ele os comprava? Só me tocou com os dedos, à meia-luz, por toda a noite. Pela manhã deixou-me descansar. Eu permaneci naquela posição a noite inteira. Talvez fosse formol aquele cheiro. Talvez fosse legista e quisesse conhecer as mulheres ainda vivas ou poder matá-las pessoalmente antes de tê-las congeladas em sua mesa de exames. Talvez. Tirou o lenço de sua mão quando o sol já refletia no espelho redondo da penteadeira. Voltei a tremer. Mas vestiu o paletó, se recompôs e saiu.
Voltou depois de quatro semanas. Trouxe um pacote enorme, embrulhado com papel pardo e corda fina. Apanhou-me pelo braço e seguiu para meu quarto. Tirou novamente minha blusa, foi ao guarda-roupa e pegou a mesma saia para eu vestir e colocou-me de volta ao divã. Abriu o embrulho e mostrou-me um quadro com meu desenho em carvão. Era eu naquela noite do mês anterior, o penteado, os seios nus, as dobras da saia, a mobília, tudo em branco e pó. Embrulhou-o novamente e refez todo o ritual. Tocou-me o corpo com os dedos e seguiu perguntando e respondendo sobre minha vida. Se eu ousei falar, me calou e não insisti. Pouca coisa que ele dizia em meu nome era real. Creio que quase nada. Pela manhã a mesma coisa.
No outro mês reapareceu, e no outro, e no outro. Chamavam-no O Pintor. Era em noite de lua que ele vinha, por conta da luz, talvez, por conta do feitiço, talvez. A cada vez o quadro que ele mostrava estava mais completo, primeiro as cores de fundo, depois as mais flúidas, as de relevo, os efeitos de luz. Nunca pintou em minha frente, em meu quarto só me tocava e inventava minha história. Quanto mais perfeita ficava a pintura mais eu acreditava em suas respostas, mais eu achava que eram verdadeiras. Quando a obra ficou pronta, tive certeza. Era eu naquele quadro, era minha alma degolada.

3 comentários:

Mariana Botelho disse...

demorei tanto pra vir aqui!

Fred Matos disse...

Pensei naquele dia que era a primeira vez que vendia meus pensamentos. Se eu vendia meu corpo para não ter que vendê-los, com que direito ele os comprava?

Para mim, vender pensamentos é muito mais grave que vender o corpo. Pensamentos são mais íntimos, no entanto, todo o tempo vendemos os nossos pensamentos sem sequer nos dar conta.

Ótimo seu texto.

Beijos

Primeira Pessoa disse...

pois é...
e vende-se o pensamento, vende-se o corpo, vende-se até a alma...
pois é...
é o que chamam capitalismo...
fazer o que?
e o seu blog é muito bom, viu, moça?
voltarei!
abraço (de graça) do
Roberto.