Comecei a anamnese numa entrevista que foi, por assim dizer, um relato. Não teria como chegar a este ponto numa primeira abordagem. Não enquanto tentava analisar as duas pústulas que desenvolviam rapidamente em suas escápulas, fugiam ao padrão, evoluiriam para um abcesso, talvez. A febre, dor, fotofobia e sudorese não cediam:
-Andei pelo mundo sendo seguida. Desde sempre. À noite confundia-o com incubus. Do nada acordava e o quarto inundava de sexo, à exaustão. Era desesperado, não era um desejo meu, não se engane. Ele chegava e me tomava à noite, me implorava e arrastava para seu desejo e frustração. Eu mal dormia, depois isto passou. Eu nem sabia que eram todos o mesmo, achei que eram vários, mas não, todos eram ele. Quando tinha insônia por dias seguidos rezava, lembrava dele, não o incubus, o que me protegia, e pedia que me deixasse sonhar, que estivesse comigo em um lugar nosso e me fizesse sentir de novo protegida e parte de algo como sempre. Eu andei muito por ruas desertas à noite, sem medo, sabe? Sempre soube que não aconteceria nada, sentia uma redoma em volta, o tempo todo, como um bebê sente a mãe que o segue com os braços em U enquanto ensaia os primeiros passos. Ria do medo das pessoas, nunca senti medo, era invulnerável, não por mim, por ele. Encontrá-lo foi apenas um outro passo do processo. Foi tormenta, vulcão, foi extinção. Caí vertiginosamente foi quando ele soltou os demônios para me devorar. Eu estava de costas, deitada, ele por cima, de repente ajoelhou e os vi chegar. Invadiram o quarto, satisfeitos, imploravam a ele que me deixassem consumir já que eu, pessoalmente, o ferira. Ele os comandava, direcionava-o para onde o mal se encontrava e ele sempre foi o melhor caçador por isto. Em troca eles o atormentava e se sentiam protegidos de alguma forma também, acho que eram como uma guangue de marginais, só que de demônios. Senti que eles me queriam muito, talvez por eu ser a protegida. Olhei em sua direção e vi quando ele autorizou. Aceitei. Seus tentáculos me invadiram ao longo da coluna, das costelas até a nuca. Pela nuca enraizaram por minha cabeça e penei uma enxaqueca por anos. Fui parar duas vezes no hospital. Até o dia que me perdoei por tê-lo magoado e decidi que não queria mais aqueles demônios me dilacerando o crânio. Uma noite, enquanto explodia em dor, levantei sem enxergar direito e com as mãos fui puxando, tentáculo por tentáculo, até tirar maior parte deles. Acho que ficaram poucos ou então foram só os espinhos ou veneno, hoje a dor é muito menor e quando começa eu domino com meus pensamentos e toda dipirona que consigo encontrar. Depois da queda tudo se foi. A proteção, o sexo forçado na madrugada, estávamos livres um do outro e também se foram meus dons. Deixei de sonhar o futuro e ouço menos os pensamentos das pessoas agora. Não sei direito quando ele voltou. Na verdade eu o procurei. Sempre o procuro. Estamos condenados, sabe? Não existo sem ele, ele é metade sem mim. Acho que viemos para propósitos diferentes e não há o que fazer. Nem queremos, mas não existo sem ele. Isto está doendo demais agora, não consigo mexer meus braços.
- Calma. Disse - são suas asas saindo, já vai passar.
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